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Topic-iconSÁBADO - Ian McEven

6 anos 8 meses atrás#75por bruno

SÁBADO : UMA VIDA
Murilo Moreira Veras
Sob exame outro livro – Sábado – de Ian McEven, escritor inglês, de quem também já discutimos o inaudito Enclausurado. Mais uma vez o autor ousa nos surpreender com uma narrativa diferente, dose de monólogo biográfico com pitada de suspense, um policial às avessas, dir-se-á.
O prefácio de Saul Bellow, em 1964, nos parece sugerir o embrião da narrativa: “Por exemplo? Bem, por exemplo, o que significa ser um homem? Numa cidade. Num século. Em transição. Em uma massa. Transformado pela ciência. Sob o poder organizado. Sujeito a mecanismos de controle tremendos. Num estado decorrente de mecanização. Após último fracasso das esperanças radicais. Numa sociedade que não era comunidade nenhuma e depreciava a pessoa...”
Seria o exemplo de Henry Perowne, sua vida, melhor, aquele instante de sua vida, num certo sábado de seu tempo?
1. Enredo: o Fio Narrativo

Henry Perowne é neurocirurgião inglês, mora nos arredores de Londres, é casado com Rosalind, advogada e tem dois filhos, o jovem Theo, jazzista e Daisy, poeta, às véspera de ter seu primeiro livro de poemas publicado na França. O sogro é professor e poeta erudito, já consagrado que tem um nome esquisito John Grammaticus. Sua mãe, Lilian, outrora nadadora profissional, encontra-se em estado de demência e vive num asilo. Perowne despende todo seu tempo num hospital no atendimento de emergência, embora seja um neurocirurgião bastante competente. É voltado para seu ofício, só acredita naquilo que pode ver e provar, como médico que faz da ciência a última palavra, sobretudo para consertar os erros ou os atropelos decorrentes da fisiologia humana. Neurocirurgião, vive abrindo e fechando cérebros, mas está longe ainda de entender a mente. Neste sábado – seu dia de folga do hospital – procura dar à sua vida um rotina, veste sua roupa esportiva e pretende jogar squash com os amigos, também médicos. Rosalind se prepara para ter um encontro importante de serviço naquela manhã. O filho Theo treina para uma apresentação, ele faz parte de uma banda de jaz. A filha é esperada naquele dia de Paris, onde está fazendo um curso. Toma o carro e vai encontrar-se com os amigos. No caminho, depara-se com grande aglomeração de pessoas, passeatas de alguns londrinos contra a guerra dos Estados Unidos no Iraque. O trânsito é difícil, tem de fazer alguns retornos, para livrar-se do trânsito. É quando, sem querer, ao fazer uma manobra no seu mercedes, bate num carro atrás, de cor vermelha, cujo proprietário chama-se Baxter, para seu desprazer um sujeito violento, na verdade um desses delinquentes de plantão no trânsito e na vida. Perowne sai do carro para pedir desculpas e pagar os danos causados, se for o caso. Mas Baxter não aceita desculpas, vem com um guarda-costa troglodita, que logo agride o médico com um soco. O médico consegue amainar a situação dizendo que Baxter tem os sintomas de uma doença compulsiva hereditária e que precisa se tratar, aconselhando-o a ir ao hospital, para uma consulta. Com isto, distrai o delinquente e acaba retomando seu carro e partindo, sem dar satisfações. Vai ao clube jogar com os amigos, que já o esperam. Terminado o jogo – em que acaba perdendo pelo seu estado de espírito diante do ocorrido – volta à casa e aproveita para visitar a mãe no asilo. O que ele não sabe é que está sendo seguido pelo carro vermelho, o tal Baxter querendo dele se vingar. Passa-se o tempo, a filha Daisy já retornou de Paris, à noite os Perowne recebem a visita de Grammaticus, pai de Rosalind, para um jantar em família. Reunidos na sala, de repente a casa é invadida por Baxter e seu guarda-costa troglodita. Começam então cenas de terror, Baxter ameaça Rosalind com uma faca em seu pescoço, esbofeteia o nariz do velho Grammaticus e, pior, obriga Daisy a se despir à frente de todos. Ela inclusive está grávida, o que desconheciam os pais. Mas Perowne consegue enganar o delinquente dizendo que tem fatos que provam sua doença hereditária e como curá-lo. Leva-o para seu escritório, um andar acima, onde tem as provas no computador. Lá, consegue dá-lhe um golpe, enquanto o filho, por trás, joga-o escada abaixo, na queda violenta o bandido afunda o crânio e desmaia. Surge a polícia, a situação volta ao normal na casa dos Perownes, depois do sufoco sofrido. No final, é o próprio Dr. Perowne que vai fazer a cirurgia no crânio de Baxter, salvando-lhe, assim, a vida.

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6 anos 8 meses atrás#74por bruno

2. Uma Interpretação

A princípio não gostei do livro, enfadonho na narração dos fatos. Só aos poucos fui realmente compreendendo o que o autor queria dizer com essa história. Um sábado na vida de um neurocirurgião. Ele está atento para o que acontece no mundo. Questiona a existência, mas não atenta para seu lado espiritual. Na realidade, está confuso, se perde em divagações. O autor quer revelar o que pensa um médico, neurocirurgião, cujo principal ofício é abrir cérebros, retirar tumores, às vezes malignos? Depois, fecha-os com toda a técnica possível? O que um neurocirurgião agnóstico pensa sobre a vida? “Tem de haver mais na vida do que simplesmente salvar vidas” – pensa ele (pag.37). O que ele pensa de si mesmo, um autômato? “Estará ele à beira de tornar-se aquele homem, aquele bobo moderno de certa idade, que se apanha parando a toda hora diante das vitrines para olhar saxofones ou motocicletas ou ser impelido a arranjar uma amante da idade de sua filha?” – continua ele em suas meditações. Os seres humanos, engolfados na modernidade, vivem por viver, não têm objetivo, esse é o sentido da vida?
Nosso personagem se ressente de formação religiosa: “Foi então que, pela primeira vez, ele desconfiou que o Deus bondoso e amante das crianças, enaltecido pela diretora da sua escola, talvez não existisse” (pag.40). Toda religião, quando mal instruída, provoca esse tipo de filosofia distorcida sobre a ideia de Deus. Deus, “Aquele que Sou”, é um ser sobrenatural, sentado num trono, administrando a eternidade, com um exército de vassalos, testando sempre a humanidade, inclusive gerando tempestades e doenças no mundo, não Deus, mas Zeus?
O prognóstico dos fatos que se sucedem no momento levam o agnóstico Perowne a duvidar se os seres humanos sobreviverão às loucuras que vêm praticando: “Ele comprou o livro de Fred Halliday e leu, nas páginas iniciais, o que parecia uma conclusão e uma maldição: os atentados em Nova York precipitaram uma crise global que, se tivermos sorte, só vai ter solução em cem anos. Se tivermos sorte.” (pag.42) A crise de nossa civilização não será uma crise de consciência, o irracionalismo que preside os atos dos seres humanos, ou melhor, a ausência do sagrado em nosso tempo? Não será o terrorismo uma forma de calar a consciência ou uma vingança coletiva contra o perdão e a misericórdia – fundamentos da fé? “ Se todos estão certos de que, no fim, vão ser felizes para sempre, que crime pode haver em massacrar um milhão ou dois, hoje?” (pag.43).
Observe-se o que Theo, o filho, diz ao pai:
“ – Quando a gente olha para as coisas grandes, a situação política, o aquecimento global, a pobreza do mundo, tudo parece mesmo terrível, nada está melhorando, não há nada de bom para esperar. Mas então eu penso nas coisas pequenas, próximas...sabe como é, uma garota que acabei de conhecer, ou essa música que a gente vai tocar com o Chas, ou brincar na prancha de esquiar na nave, no mês que vem, e aí parece ótimo. Então, o meu lema será este: pense nas coisas pequenas” (pag.44) Ainda devemos ter esperança em relação aos jovens. Bonito esse pensamento do rapaz. Por que não pensamos nas coisas pequenas da vida, nos pequenos prazeres? O ser humano não pode ser um ente desesperado, sob pena de afundar-se no infortúnio, no vazio, na absurdidade que nos transmitem as grandes tragédias!
Nossa sociedade vive prisioneira de seus próprios erros e acaba armadilhando-se em suas próprias fobias: “Tantas proteções, tantas fortificações cotidianas: cuidado com os pobres da cidade, os viciados, os francamente maus.” (pag.46).
Por que os tiranos, os ditadores, têm sempre aquela aparência afável, de salvador da pátria, bondoso, criando benesses aos pobrezinhos? “Só crianças, na verdade, só bebês sentem o desejo e a sua satisfação como uma coisa só; talvez seja isso que dê aos tiranos o seu ar infantil.” (pag.48) Haja vista o Jing-Jon-Un da Coréia do Norte.
Á página 55, o autor celebra o engenho humano. Até onde vai esse engenho científico. Progresso significa felicidade, cura-se o corpo, mas como curar, remendar a alma?
“Penetrar direto pelo rosto, remover o tumor através do nariz, trazer o paciente de volta à vida, sem dor nem infecção, com a visão restaurada, era um milagre do engenho humano.”
Agora o autor nos dá uma lição, bem ao gosto científico, freudiano: “Sexo é um meio diferente, retrata o tempo e os sentidos, um hiperespaço biológico tão remoto de vida consciente quanto os sonhos, ou quanto a água é do ar.” (pag.62)
Podemos viver sem história, somos seres vagantes, ou, ao contrário, viandantes na estrada de nosso existir – como polemiza Daisy ao pai que nega isto – nossos passos já percorridos por outros, experiências apreendidas? “’Aquela ideia de Daisy, de que as pessoas não podem viver sem histórias, é simplesmente falsa. Ele é uma prova viva disso.” (pag.77)
Vivemos o mundo dos espetáculos, somos factoides do progresso, de ruas repletas de carros, do celular, do computador mais novo, de quem ganha mais, o egoísmo imperando: “É uma condição da época, essa compulsão para ver o mundo e unir-se à maioria, a uma comunidade de angústia. O hábito ficou mais nos últimos dois anos; estabeleceu-se uma nova escala de valores de notícias, por conta de cenas monstruosas e espetaculares.” (pag.188)
No seu nicho particular, envolvido pelo tecnicismo médico, o autor classifica assim seu personagem naquele sábado confessional: “Perdeu o hábito do ceticismo, esta ficando obtuso, com as opiniões contraditórias, não pensando com clareza e, o que é igualmente ruim, sente que não está pensando de forma independente.”(Pag.193)
O autor tem uma visão bastante negativa sobre os americanos invadirem o Iraque: “– e, quando os americanos tiverem invadido, não vão estar interessados em democracia, não vão gastar nenhum dinheiro no Iraque, vão tirar o petróleo, construir suas bases militares e governar o país como uma colônia.” (pag.199).
A rotina como neurocirurgião transforma Perowne numa pessoa mais compreensiva: “Como Henry se lembra, trabalhar na emergência é uma lição de misantropia.” (pag.259). Aliás, interessante advertência aos médicos da atualidade, tão preocupados em ganhar fama e dinheiro.
E aqui o autor, através do monólogo de seu personagem, põe em cheque de certo modo esses espetaculares avanços da tecnologia médica: “Apesar de todas os recentes avanços, ainda não se sabe como esse protegidíssimo um quilo, ou um quilo e pouco, de células efetivamente codifica informações, como preserva experiências, lembranças, sonhos e intenções.” (pag.270) Só há uma explicação: a intervenção divina.
Mas ele acredita que a ciência resolverá esse problema: “... o segredo fundamental do cérebro será revelado um dia.” (pag.270). E faz uma pergunta sempre insolúvel para essa mesma ciência: “Será que algum dia se conseguiria explicar como a matéria se transforma em consciência? (pag.270) E afirma: “É o único tipo de fé que ele tem. Há algo de sublime nessa visão da vida.” (pag.271)
Materialista, Perowne não se desprende nunca de sua visão mecanicista, mesmo diante da espiritualidade: “Que maravilhoso conto de fadas, como era humano e compreensível o sonho de curar com o toque de mão. Se isso pudesse ser realizado apenas com a carícia de um dedo indicador, ele o faria agora mesmo. Mas os limites da arte da neurocirurgia tal como se encontra hoje, são bastante claros: em face daqueles códigos ignorados, aquela densa e formidável rede de circuitos, ele e seus colegas oferecem apenas uma excelente serviço de encanadores.” (pag. 271). Médicos, cirurgiões, cientistas. pesquisadores, inventores, em face do incomensurável arsenal dos mistérios eternos não passam de simples encanadores, realmente.
Quanto ao que denominamos justiça social, o autor faz ressoar pela boca de sua personagem: “Nenhuma quantidade de justiça social vai curar nem dispersar esse exército debilitado que frequenta os lugares públicos de todas as cidades.” (pag.290).
Por fim, conclui-se que nosso personagem não é tão misantropo assim, pois: “ Ao salvar sua vida na sala de cirurgia, Henry também condenou Baxter à sua tortura.” (pag.295)

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6 anos 8 meses atrás#73por bruno

3. Conclusão

Ao correr de sua escritura, o autor demonstra estar afinado com a realidade do mundo e cético quanto aos fatos em si, mesmo sob o ângulo agnóstico. Perowne retransmite a opinião do escritor que o faz imbricando com o próprio pensar da personagem por ele criada. Tem um estilo sarcástico, realista, embora sua mão pese no trâmite de sua narrativa. Neste Sábado, McEwan como que se supera na profusão de situações e fatos que critica. Nada parece escapar de sua vendeta literária. Transita sobre inúmeras áreas: política, medicina, sociologia, criminologia, psiquiatria. Para escrever o livro, explica ter consultado vários profissionais do gênero. É um escritor engajado, que enfrenta o bem e o mal do mesmo jeito: como um demolidor. Será preciso certa paciência ao percorrer a escritura do autor, penetrar-lhe a argúcia de seu pensamento na linguagem. Sua personagem central – Henry Perowne, o neurocirurgião – não parece tão obtuso em face da rotina, às vezes negaceia, quer alcançar nível mais alto, mas sua formação o limita, devido sua escassez de espírito. Mas é um homem de carne e osso, respira, tem o sexo como definitivo. Será que o autor quer nos fazer crer que um materialista é capaz de amar seus semelhantes, salvar-lhe a vida, ter fé na sua convicção reducionista da vida e do mundo, ter um sentido naquilo que faz e crer? É um caso a ser discutido, não à luz da espiritualidade sob cuja égide a vida do ser humano sempre tem sentido, mas mediante o crivo do racionalismo de Kant, preestabelecido pelo seu imperativo categórico.
Bsb, 16.08.17

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